Por Ir. Veridiana Kiss, ASCJ*
O presente artigo visa refletir sobre a temática do autoconhecimento na Vida Religiosa Consagrada aprofundando elementos que constituem um percurso de entrega radical no serviço ao Reino, isto é, como o consagrado conhece a si mesmo, se aceita e se reconcilia com a sua própria história, reconhecendo o dom de si e orientando-o para à humanidade.
Partimos da premissa de que o caminho do conhecimento de si, nem sempre é fácil, e isto é verdade, pois, é um percurso que exige ruptura com uma falsa imagem de si mesmo, no intuito de olhar-se com realismo, o qual, diante de tantos desafios apresentados pelo mundo atual, se faz necessário para todas as pessoas, e mais ainda, se faz imprescindível para aqueles que se sentem chamados à consagração total no seguimento de Cristo[1]. O autoconhecimento é uma passagem basilar para a maturação da própria vocação, para a autoaceitação das próprias emoções e a integração do indivíduo na sua totalidade, sobretudo para se configurar Àquele a quem se segue.
Na realidade, a vida consagrada precisa de pessoas que tenham atingido um nível de autoconsciência madura e uma transparência que lhes permitam administrar suas relações interpessoais com uma certa liberdade, de modo a gerar vida e liberdade ao seu redor, como afirma Rulla: “Deus chama a profundidade de nosso ser, nosso coração, à liberdade para a autotranscendência do amor” (1985, p. 256).
O autoconhecimento objetivo, coloca cada indivíduo em contato com o profundo mistério de si, com suas lutas, dores, necessidades, suas resistências que dificultam seu crescimento e os desejos que habitam no coração humano. Conhecê-los, aceitá-los e orientá-los para o que se escolheu é um dos principais desafios na formação[2] à vida religiosa consagrada a fim de acolher e compreender a vontade de Deus na própria vida, sem negar a realidade. Comprometer-se com a proposta de Deus requer tempo, vida de oração assídua, discernimento, corresponsabilidade, abertura as mediações, porque esta enfatiza os elementos a serem amadurecidos e purificados no caminho de crescimento vocacional. Sem um verdadeiro e sincero conhecimento de si, a ser desenvolvido face ao ideal e, portanto, aos critérios objetivos do crescimento da própria vocação cristã, seria quase impossível compreender o que há realmente para ser purificado, revitalizado e amadurecido. Portanto, faz-se indispensável cultivar um profundo e gradual percurso de acompanhamento psicoespiritual.
1. Autoconhecimento como percurso de autoaceitação
Amedeo Cencini[3] em seus escritos, destaca que o conhecimento verdadeiro e realista, leva cada indivíduo ao contato com o que se vive no eu atual: limites e valores. Permite com que reconheça os dons e talentos recebidos de Deus e os seus pontos a serem melhorados; faz com que reconheça a sua própria realidade e negatividade dando-lhe um nome preciso; ajudá-o a compreender onde se é particularmente frágil, para identificar as áreas da própria escravidão e vulnerabilidades. Finalmente, levá-o a conhecer as suas incoerências e as áreas da personalidade que estão fechadas à ação do Espírito, num nível consciente e inconsciente. A partir daí, quanto mais precisa a identificação, mais eficaz pode ser então o trabalho de purificação, conversão, integração para alcançar essa consciência em viver a verdade, a sinceridade de uma forma autêntica, sem exaltação ou degradação.
Conforme o autor, o autoconhecimento requer outro passo importante que é a autoaceitação, em outras palavras, olhar para si próprio com um olhar benevolente, sem a autocondenação. Aceitar-se como se é, com falhas e qualidades, para que a autoaceitação o ajude a administrar as suas necessidades, a superar seus limites, e acima de tudo não pretendendo eliminar o seu componente negativo, mas reconhecendo-o como um sinal inerente de humanidade.
Atualmente, é comum encontrar consagrados incertos da própria identidade, de quem realmente são, ou com a sensação de que a parte mais profunda de si está submersa por uma autoimagem plena de convicções, regras, preconceitos, medos, ansiedades que, realmente nem sequer o conseguem reconhecer. Muitos, às vezes, por falta de tempo, de instrumentos ou até mesmo por desinteresse nunca tiveram a oportunidade para descobrí-lo. Com o intuito de superar desconfortos, falta de sentido, insatisfações, perda do encanto inicial da própria vocação e bloqueios interiores, faz-se necessário aventurar-se em um percurso sistemático e perseverante de conhecimento de si, a fim de compreenderem suas limitações e fragilidades, bem como, redescobrir seus talentos e potenciais inexpressivos. Desta forma, e, graças à exploração de sua verdadeira identidade como pessoa, será possível construir uma boa autoestima e sentirem-se realizados, integrados e sobretudo livres nas relações consigo mesmo, com os outros e com Deus.
2. Cultura do acompanhamento psicoespiritual
A cultura do acompanhamento psicoespiritual ainda é muito escassa ou quase inexistente na vida religiosa consagrada e comunitária, de um modo geral. Muitos, ainda vivenciam a mentalidade de que um processo psicoterapêutico seria apenas para pessoas “problemáticas” ou que possuem um determinado nível de “patologia”, resultando por viver uma vida medíocre, como fotocópias, inconsistente ou sem uma identidade estruturada no total desconhecimento de si. Certamente, somente após revisitar um passado por vezes desconhecido, mas, que continua muito vivo dentro de cada indivíduo, que desperta a cada vivência de suas memórias afetivas, será possível uma resposta responsável, livre e autêntica em sua opção fundamental.
No que diz respeito ao consagrado, além de entrar em um mundo interior para conhecer as suas incongruências, bem como suas potencialidades, o percurso de autoconhecimento faz-se crucial para assimilar os dons recebidos de Cristo, para identificar-se com Sua vida e ser configurado com Ele. Para além das mãos humanas, o acompanhador com uma particular preparação, embora conduzido pelo Espírito, caminha junto, mas não alcança, pela pessoa, um verdadeiro e transformante “entrar no próprio mundo interior” sem as mãos de Deus, pois Deus que habita em cada ser, o conhece em profundidade.
Neste árduo itinerário, cada passo, cada descoberta, sentimento, incoerência revelada, ferida aberta, são integralmente envolvidos no manto de amor e misericórdia d’Aquele que conhece cada pessoa como nenhum outro e a acolhe, conforta, ilumina, cuida, cura, fortalece, ressignifica, revitaliza e finalmente, faz nova todas as coisas (cf. Ap 21,25). Através de um percurso sistemático poderão dizer como o salmista, que se maravilhou com o mistério da origem humana e louvou a Deus que tudo sabe: “Senhor, tu me sondas e me conheces. Tal conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance, é tão elevado que não o posso atingir”. (cf. Sl 138). A partir, do reconhecimento de quem se é, o consagrado será convidado a percorrer um processo de integração em tal conhecimento.
3. Autoconhecimento como caminho de integração
A integração, é realmente uma palavra que nos interessa no campo de formação à vida consagrada, ela dura por toda uma vida[4]. Conforme Manenti, é este processo que nos permite organizar e reorganizar, continuamente, as nossas energias psíquicas “mente, coração e vontade”, em torno de um centro vital, de acordo com um movimento de adaptação recíproca que nunca está definitivamente concluído.[5] Do ponto de vista psicológico, a integração significa que para se viver bem é preciso ter uma centralidade na vida, deixando que seja a pessoa interessada a definí-la. Aquele que é integrado psicológicamente, permanece fundamentalmente sozinho na decisão de seu próprio destino. A integração cristã é mais inter-subjetiva no sentido de que o centro vital não é apenas algo que espera passivamente ser encontrado, mas contribui para ser encontrado, portanto o coração cristão integrado é também um coração que sabe se “acomodar” ao centro, que se configura como um colaborador na busca. É um coração que está menos sozinho diante de seu destino, porque faz a experiência do encontro entre a verdade integral e o Amor que o criou. Além disso, o centro vital identificado no mistério pascal não só fala do objetivo final, mas também fala do caminho e de como percorrê-lo, ou seja, amar como Cristo amou, descobrindo em nós sua presença.[6]
Enfatizamos, desta forma, que todo caminho de consagração visa ajudar a pessoa a colocar Deus como CENTRO fundamental do seu próprio percurso, estabelecendo relações salutares consigo e com os outros, a fim de amar com o coração d’Ele, como Ele ama e convertendo-se em dom.
3.1 Integrar-se para amar como se é amado
A integração da pessoa se reflete na experiência religiosa, o que lhe permite amar livremente e também deixar-se amar. Jesus ensina que não é possível amar o próximo se não se faz a experiência do verdadeiro amor, ou de deixar-se amar: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Amarás o teu próximo como a si mesmo” (Mt 22,35-39). Ao amar o próximo, expressa-se o amor por Deus, é possível reconhecer a grandeza da Sua obra despertada em cada pessoa; quando se ama o próximo como a si mesmo, demonstra-se que o seu amor por Deus é verdadeiro.
3.2 Integrar-se para fazer-se dom
O dom de si é também um gesto de amor incondicional e liberdade que autotranscende, porque é um gesto de total renúncia à afirmação da própria personalidade, no esquecimento de si, que esvazia o coração do egoísmo e a vontade de poder. Ser para os outros é o segredo de uma vida bela, de quem chegou a integração do próprio eu. Papa Francisco (2019), confirma que a beleza da vida doada, está no SER para o outro: “Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação. A tua vocação orienta-te para tirares fora o melhor de ti mesmo para a glória de Deus e para o bem dos outros”. É, como se o ato altruísta os tornasse anônimos, sem qualquer expectativa pessoal. Uma vocação única para a empatia, para o sacrifício, para a entrega de si mesmo pelos outros. Um amor puro, desinteressado e sem reservas, mas também um pouco receoso de preservar a sua própria autonomia. Na tensão dialética entre dar e não dar, entre o vazio e a plenitude, entre renunciar e receber, a pessoa guiada por um amor ainda maior encontra sempre o mesmo amor, aquele Amor que a chamou pessoalmente para se dar a si própria: Com efeito, a nossa vida na terra atinge a sua plenitude, quando se transforma em oferta.[7]
Vale propor aqui, um exame de consciência que tenha como ponto central o revigoramento da consistência na própria vocação religiosa: Conheço-me a ponto de maravilhar-me com a grandeza do Senhor que independente das minhas limitações continua a confiar e realizar seus propósitos em mim? Aceito-me como sou, com meus desacertos e potencialidades? Sou capaz de olhar para às minhas fragilidades com coerência e responsabilidade diante do projeto que o Senhor me propõe? Reconheço-me com dom e, consequentemente, faço dom de mim mesmo na minha consagração, na vida pessoal e comunitária? Sou capaz de uma vivência integrada em todas as dimensões e realidades do meu ser? Vivo relações salutares dentro e fora da minha comunidade religiosa?
Considerações finais
O intuito desta reflexão, é promover pistas para uma autoavaliação de como vivi até hoje, como vivo e como quero viver o dom por excelência da consagração depositado em cada consagrado. Almejamos que este “dom” seja de qualidade, salutar e de entrega sem condicionamentos.
Que em Maria, referência original no cumprimento da vontade de Deus e modelo perfeito de um coração integrado, possamos contemplar e integrar o que vimos, ouvimos e experimentamos. Temos muito a aprender com Ela, uma mulher que é dona de si e que soube guardar todas as coisas no seu coração. A seu exemplo, aceitemos o convite para “voltarmos ao coração”, redescobrindo-o como lugar destinado a ser morada de Deus, campo da sua Palavra e morada do Espírito. Porque somente um coração purificado, poderá ser terreno disponível para a presença do Senhor, a escutar a consciência e discernir a sua vontade.
Olhemos para o futuro com esperança, revitalizando a vida religiosa consagrada com a fidelidade criativa e uma renovada confiança na Luz da graça de Deus, que ilumina a nossa humanidade para continuar realizando em nós maravilhas: “Vós não tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma grande história a construir! Olhai o futuro, para o qual vos projeta o Espírito a fim de realizar convosco ainda grandes coisas” (Vita Consecrata, 110).
Referências Bibliográficas:
CENCINI A. Dal modello della perfezione al modello della integrazione. Curia Generalizia Ordine Cisterciense. Roma 2003.
CENCINI, A. MANENTI, A. Psicologia e Formação. Paulinas, São Paulo, 1988.
CENCINI A. MANENTI A. Psicologia e Teologia. EDB, Bologna 2015.
CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA. Alegrai-vos. Carta Circular aos consagrados e consagradas do Magistério do Papa Francisco, Roma 2 de fevereiro de 2014.
FRANCESCO. Esortazione Apostolica post-sinodale ai giovani e a tutto il Popolo di Dio. Christus vivit. Roma 25 marzo 2019.
GIOVANNI PAOLO II. Esortazione Apostolica Post-Sinodale. Vita Consecrata. 25 marzo 1996.
MANENTI A. Compreender e acompanhar a pessoa humana. Manual teórico e prático para o formador psicoespiritual, Editora Paulinas, 2021.
RIGON S. Saper leggere oltre il problema, Tredimensioni 3 (2006) 159- 165.
RULLA L. Antropologia della vocazione cristiana. Basi interdisciplinari, Edb, 1985.
*Ir. Veridiana Kiss, é Apóstola do Sagrado Coração de Jesus. Desenvolve pesquisas na área da Vida Religiosa Consagrada e Sacerdotal. E-mail: kveridiana@gmail.com
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[1] Cfr. Vita Consacrata, 65.
[2] Cfr. S. RIGON. Saper leggere oltre il problema, Tredimensioni, 3 (2016, 159).
[3] Cfr. A. CENCINI. Del modello della perfezione al modello della integrazione – Corso di Formatori dell’Ordine Cisterciense, Roma 2003.
[4] Cfr.https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-07/vida-consagrada-espiritualidade-sinodal.html/
[5] Cfr. A. MANENTI. Comprendere e accompagnare la persona umana, 91.
[6] Cfr. A. MANENTI. Comprendere e accompagnare la persona umana, 100-101.
[7] PAPA FRANCESCO. Christus Vivit, 254.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-08/revitalizando-vida-religiosa-consagrada-pelo-autoconhecimento.html